Nova Humanidade em Cristo: entendendo a carta aos Efésios
Introdução
A carta aos Efésios, juntamente com Filipenses, Colossenses e Filêmon, é conhecida como “carta do cativeiro”, por dar a entender que Paulo se encontrava preso (Ef 3,1; 4,1; 6,19-20). Acredita-se que Paulo foi prisioneiro em Roma, entre os anos 61 e 63 d.C., e pode ser que nessa ocasião tenha escrito a carta a seus seguidores e seguidoras da cidade de Éfeso, capital da província romana da Ásia Menor, para instruí-los no projeto (mistério) salvador de Deus e na vida comunitária em Jesus Cristo.
No entanto, uma simples comparação da carta aos Efésios com as cartas protopaulinas (Rm, 1 e 2Cor, Gl, Fl, 1Ts e Fm) possibilita perceber que há grandes diferenças quanto ao estilo, vocabulário, teologia e orientação pastoral, levantando dúvidas sobre a autoria de Paulo.
1. Autor, destinatário e data
Os estudiosos apontam as seguintes características da carta em estudo:
Esses dados são suficientes para afirmar que Paulo não escreveu a carta aos Efésios. Essa carta-circular possivelmente foi enviada a várias comunidades no fim do primeiro século, no contexto de exploração e dominação do Império Romano.
2. Conhecendo a realidade
O livro do Apocalipse de João, escrito no fim do século I d.C. na Ásia Menor, descreve a exploração econômica da região pelos “mercadores da terra” (o Império Romano). Estes estavam explorando e levando a riqueza da terra para a capital do império: “Carregamento de ouro e prata, de pedras preciosas […], vinho e azeite, flor de farinha e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e vidas humanas” (Ap 18,12-13). O último trecho – “cavalos e carros, escravos e vidas humanas” – aponta e simboliza o regime econômico e político do Império Romano: uma sociedade escravagista, controlada por um exército poderoso e violento (Ap 6,1-8). A dominação começa com a terra: a maioria das terras da Ásia Menor pertencia ao império, o que gerava a cobrança sistemática de impostos e o monopólio do comércio (Ap 13,11-18).
A maioria da população local estava submetida à escravidão, decorrente da exigência de impostos, do comércio abusivo e das várias formas de violência. O duro trabalho nas fazendas (“ovelhas”), nas minas (“prata”, “pedras preciosas”) e nas fábricas (carroças e carros puxados por cavalos) enfraquecia e empobrecia o povo. O sofrimento aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império no ambiente social e cultural da Ásia Menor, subjugação que se manifestava com as seguintes características:
O sofrimento do povo conquistado foi acentuado nos anos do reinado de Domiciano (81-96 d.C.), um imperador arrogante, que exigiu ser chamado de “Senhor e Deus”. Seus últimos anos foram marcados pelo terror (com muitas sentenças de morte, também contra membros da própria família, e feroz perseguição aos cristãos) e por problemas econômicos, geradores de grande turbulência, exploração e violência contra a população da Ásia Menor.
Era nesse mundo hostil que as comunidades cristãs jovens, recém-separadas do judaísmo (judeu-cristãos expulsos da sinagoga: cf. Jo 9), deviam firmar-se, unir-se e manter sua caminhada, pregando Cristo Jesus crucificado e praticando o amor ao próximo (Ef 3,14-22).
Sobretudo os gentios convertidos deviam apropriar-se das virtudes de Cristo, livrando-se de uma vida não cristã, dos vícios e dos maus espíritos. Ademais, por volta do ano 90 d.C., os cristãos já não esperavam uma parúsia iminente (Ef 2,5.8), mas se empenhavam em construir “moradas” neste mundo (Jo 14,23). A preocupação com a solidificação da Igreja e com a estabilidade da família cristã estava em primeiro lugar diante dos problemas do mundo.
3. Conhecendo os problemas
A carta aos Efésios não faz referência direta a problemas ou a situações concretas de uma comunidade específica. Entretanto, nas entrelinhas do texto, surgem os problemas que um pequeno grupo de comunidades, formadas ao redor da figura de Jesus Cristo na Ásia Menor, enfrentava para manter sua sobrevivência, entre os quais a questão da terra explorada e dominada pelo Império Romano. Ao procurarem viver o amor ao próximo, as comunidades, a exemplo de Jesus Cristo, chocavam-se com os valores do imponente mundo helenizado e hierarquizado em que estavam inseridas.
4. Conhecendo a carta aos Efésios
A carta pode ser dividida em duas partes. A primeira é uma parte doutrinal sobre o projeto salvador (o mistério) de Deus, realizado em seu Filho, Jesus (Ef 1,3-14), e desenvolvido na Igreja, a qual tem, como cabeça, Jesus Cristo soberano e crucificado (Ef 1,15-2,22), anunciado por Paulo (Ef 3,1-21). A segunda é marcada pela exortação a dinamizar a vida cristã: viver na unidade (Ef 4,1-16), viver como filhos da luz (Ef 4,17-5,20), ser família cristã (Ef 5,21-6,9), lutar contra o mal (Ef 6,10-20). Eis um possível esquema para a carta:
5. Conhecendo as mensagens principais
A carta aos Efésios apresenta uma reflexão sobre a Igreja como corpo de Jesus Cristo. Ela exorta os leitores a uma conduta digna da vocação cristã no mundo helenista, patriarcal e escravagista do Império Romano.
Conclusão
Quase dois mil anos se passaram, mas os espíritos do mal (ambições de bens e de poder) continuam seduzindo, encarnando-se nos poderosos de hoje e devorando as pessoas inocentes mediante as guerras, o trabalho escravo, a economia selvagem, a fome, a violência etc. Como os cristãos podem lutar contra o mundo do maligno, não só em sentido espiritual, mas também em sentido real e concreto? As injustiças e desigualdades crescem a cada momento, dentro e fora das comunidades cristãs. Temos o desafio de reavivar a justiça, a solidariedade e a irmandade em nossa vida e missão.
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Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose
*Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de EstudosSuperiores (Itesp). E-mail: ma.antoniacbv@yahoo.com.br
**Shigeyuki Nakanose, svd, é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de
Estudos Superiores (Itesp).
E-mail: contato@cbiblicoverbo.com.br